segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O ÍCONE: TEOLOGIA DA PRESENÇA


*Palestra proferida pelo Pe. Ulysses Reis, do Movimento Comunhão e Libertação, em 17/09/2009, no Mosteiro de S. Bento de Brasília, por ocasião da Exposição de Icones do Atelier de Iconografia SANTA CRUZ.


Antes de falarmos do ícone como expressão do Mistério, precisamos apresentar a questão da possibilidade da expressão do Mistério em alguma obra humana pintada ou esculpida.

Estamos na verdade diante do problema de como comunicar o Mistério ou mesmo se Ele se comunica com os homens.

O Sagrado, como dimensão da existência humana é algo estudado pelos antropólogos, etnólogos, filósofos, linguistas, historiadores já há mais de duzentos anos. Este aspecto da existência individual e coletiva do ser humano é algo inquestionável, mesmo para aqueles que não crêem. Mais do que constatar este fenômeno, muitos destes estudiosos percebem que o Sagrado com a dimensão fundante, estrutural, do existir humano.

O estudo do Sagrado é inseparável do estudo das expressões materiais do Sagrado: mitos, lugares sagrados, animais sagrados, templos, representações pintadas ou esculpidas das divindades etc. Todas elas são uma tentativa de comunicar uma realidade mais profunda, espiritual, de difícil acesso, ainda que incessantemente buscada por todo ser humano, pois ela remete às chamadas perguntas fundamentais: O que é o mundo, de onde vem o mundo; o que eu sou, qual o meu destino; Como explicar o laço que me une ao mundo, ao povo a que pertenço; como reatar estes laços, quando eles parecem se romper.

É dessa necessidade humana, presente em todos os povos que emerge o Sagrado, a busca da relação com o Mistério que nos faz e suas expressões.

Dentro da tradição cultural ocidental, a experiência do Sagrado surge duas civilizações bem distintas: a Judaica e a greco-romana.

O Sagrado na cultura greco-romana reconhece na Natureza a primeira expressão do sagrado. É num segundo momento que as expressões das forças naturais ganham uma representação de deuses antropomórficos, representados em estátuas e abrigados nos templos. Nesse sentido, a PHYSIS/NATURA é a primeira e mais original compreensão do Sagrado. Ela engloba o cosmo, os homens e os deuses. Ela cria uma ordem, que passa a ser modelo para a vida dos deuses e dos homens. A HYBRIS é quebra dessa ordem, que precisa ser rapidamente restaurada. A PHYSIS não é uma divindade entre outras, mas tudo o que existe. Por isso, não há uma representação da PHYSIS, pois toda a realidade, visível e invisível é a própria PHYSIS. Como tal a PHYSIS sempre existiu. O mundo é eterno para os gregos antigos e não uma realidade criada. Se por um lado a PHYSIS não se representa, por outro, esta concepção permite uma ampla representação do Sagrado, já que ele se expressa nas formas naturais. O Sagrado não é algo distante; vive-se imerso no Sagrado; ele é algo VISÍVEL. Disto resulta a enorme criatividade da cultura greco-romana para expressar o Sagrado: templos, esculturas, pinturas...

Mas os gregos desenvolveram outra forma de compreensão da Realidade, que foi a filosofia. Não era o modo de pensar e de se relacionar com o Sagrado da imensa maioria das pessoas, mas permitiu um enorme aprofundamento da compreensão do Sagrado como TRANSCENCDENTE, algo muito além da realidade sensível e material. Como tal, Ele não tem como se confundir com nada representável. Duas concepções brotam desta descoberta: a primeira que diz que o Divino é de tal natureza, que não pode ser alcançado pelos homens; Ele permanece inacessível, completo em si mesmo. Nenhuma linguagem pode expressá-Lo. Outra concepção admite que os homens guardem com o Divino um “parentesco”, através de sua alma espiritual e como tal, por um esforço da razão e por uma purificação dos sentidos, torna-se possível o acesso a esse Mistério. Ainda assim, nessa visão, o Mistério não é passível de nenhuma representação. Ele é uma IDEIA, um conceito mental, é impassível: nada que os homens façam ou deixem de fazer o afeta. Na concepção aristotélica, Ele atrai tudo a si sem ser atraído por nada. Ele se completa em si mesmo; sua única atividade é a autocontemplação. Estas noções marcaram indelevelmente todo o desenvolvimento do pensamento Ocidental e ao mesmo tempo são a expressão de uma compreensão racional do Sagrado, do que se chama em filosofia de teodiceia.

Bem outra é a experiência do Sagrado na Civilização Judaica: O Sagrado se COMUNICA aos homens. Noutra palavras, Ele se REVELA, apresenta aos homens um determinado caminho. No entanto, Ele permanece igualmente transcendente. O mundo natural não é onde O Encontramos, nem é sua expressão. O mundo natural foi criado por Ele. O mundo não é eterno como para os gregos, nem é expressão do Divino. Nenhuma criatura pode expressar, ainda que minimamente o que Ele é, ou como Ele é. O Deus Judaico não se vê, mas se ouve. A expressão de Deus é sua PALAVRA – DABAR. Palavra dita de modo definitivo e irrevogável. Os homens, reconhecendo a sua indigência e dependência dessa Palavra, devem somente obedecê-la como único caminho para uma felicidade neste mundo. A Palavra comunicada é expressão da infinita Sabedoria com que Ele fez todas as coisas. Essa Palavra se expressa numa Lei Objetiva. Tão somente ela é objeto de estudo e veneração. De qualquer modo, nessa compreensão, O SAGRADO NÃO PODE SER EXPRESSO EM NENHUM TIPO DE REPRESENTAÇÃO! Ele está acima de todas as coisas criadas. Deus não se vê! A proibição de qualquer representação de Deus é categórica, ainda que indiretamente se permita representações “não-sagradas”. Esta compreensão é central no Judaísmo. Deus é absolutamente transcendente. No entanto, há algo nessa noção de transcendência que é bem diferente da noção da filosofia grega. Ele se comunica/se revela aos homens porque “ouve os seus (dos homens) clamores”. O Deus Judaico é transcendente, mas é PASSIONAL! Ele se ocupa das suas criaturas. O Divino grego não cria nada; o Deus judaico criou todas as coisas. Dentre suas criaturas, o homem é imagem e semelhança d’Ele. Logo Ele se “ocupa” dessa sua infeliz criatura. Se o Deus Judaico “fala” é porque Ele não é “surdo” aos clamores dos homens. O Deus Judaico é transcendente e ao mesmo tempo passional. Essa concepção é incompatível com a noção de transcendência grega, pois para estes, se o Divino é passional é porque Ele, de alguma maneira é afetado, por tanto “carece” de alguma coisa, logo não é perfeito. A noção de Divino dos gregos é inseparável da noção de perfeição, no sentido de ser completo, acabado, nada poder lhe ser acrescentado ou tirado, de bastar-se a si mesmo.

O Cristianismo, por sua vez instaura uma visão completamente nova e revolucionária do Divino e do Transcendente. O Evangelho de S. João afirma nas suas primeiras linhas: “O Verbo se fez carne”! A Palavra criadora e que deu aos homens a Lei, mas permanece oculta em seu mistério, tornou-se uma pessoa, um homem. Esta é a maneira mais radical afirmação do Cristianismo. Ela é incompatível tanto com a noção grega quanto com a judaica do que possa ser o Divino. Como um ser limitado e imperfeito como o homem, pode ser a manifestação do Mistério, como indagaria um filósofo grego? Como uma criatura poderia ser a manifestação do Criador, perguntaria um mestre da Lei? Os judeus poderiam admitir que alguém falasse em nome de Deus, mas jamais que este alguém se identificasse com o próprio Deus.

A Pessoa de Cristo se torna para o cristão, o lugar do encontro com o Divino. O mistério passa a ter um rosto; ele fala, comunica não só palavras, mas a sua Pessoa. A sua Palavra, o seu Evangelho, a sua Pessoa é a manifestação da sua Divindade. O Divino se tornou humano. Há uma humanidade concreta, histórica, na qual Deus se manifestou. O eterno entrou no tempo. Em um ponto da história o Divino tocou o humano.

O Evangelho, enquanto testemunho da pregação dos apóstolos, é o resultado de uma experiência real, concreta, cotidiana, com este homem divino/humano. Na sua humanidade se manifesta algo tão excepcional, que impacta tanto aqueles homens que eles têm que se render a uma evidência: “ninguém jamais falou como este homem”! Como tal, cabe-lhes reconhecer: “Tu és o Messias, o Filho do Deus Vivo que deveria vir a este mundo”.

O reconhecimento da divindade de Jesus não é o resultado de uma reflexão filosófica, de um processo de teorização, mas expressão do encontro com esta humanidade de tal modo excepcional, que nela se reconhece uma presença: a Presença do Divino. Esta presença se torna a resposta ao desejo mais profundo de todo ser humano: ver Deus. No diálogo de Jesus com Filipe isso é evidente. Diz Filipe: - Senhor mostra-nos o Pai e isto nos basta! Responde Jesus: - Ora Filipe, há tanto tempo estou convosco e não me reconheceis?! Quem me vê, vê o Pai! A presença de Cristo continua viva, eficaz no meio dos seus seguidores, mesmo quando Ele não estiver mais entre eles. Ela é capaz de continuar a gerar uma nova maneira de ser e de se relacionar, uma experiência da presença do Mistério como nunca houve antes. Neste sentido é que surge a Igreja como corpo concreto e histórico da Presença do Mistério no mundo. A Igreja não é um acidente ou uma diminuição da grandeza da Presença de Cristo no mundo, mas o contrário, ela continua a mesma lei pela qual o Mistério se tornou visível: A lei da Encarnação, pela qual o Mistério vau entrando e se fazendo presença, primeiro na humanidade real e concreta de Jesus de Nazaré, presença única e irrepetível e, em seguida, de modo derivado, na humanidade de seus seguidores, os homens e mulheres, os povos, as culturas e os tempos, que aderem ao seu modo de ser.

Somente agora é que podemos colocar o problema da possibilidade de uma representação ou não do Mistério na perspectiva cristã. Em primeiro lugar, temos uma constatação histórica, fática: representou-se, isto é, fizeram-se imagens de Cristo, dos apóstolos, de Maria e dos mártires, muito tempo antes de se colocar ou não a questão se era ou não correto isso. As catacumbas, não só romanas, mas em toda a bacia do mediterrâneo, testemunham este fato. O Cristianismo desenvolveu-se em culturas (grega, romana, aramaica e copta) em que a tradição pictórica estava muito desenvolvida e isso não apareceu, num primeiro momento, algo problemático.

A crise iconoclasta, que se abateu sobre a Igreja principalmente no oriente a partir do século VII, que entre os mais radicais negava completamente a possibilidade de representações esculpidas ou pintadas de qualquer tipo se deveu na verdade ao longo processo de desenvolvimento da Cristologia, isto é, da compreensão da real natureza e missão de Cristo. O confronto entre difisistas, isto é os que defendiam que Cristo tinha duas naturezas em uma só pessoa, a humana e a divina, os monofisistas, de que Ele possuía uma só natureza, a divina, isto no início do século V, se prolongou em diferentes expressões pelos séculos seguintes. A última delas foi a querela iconoclasta.

O Concílio de Calcedônia, em 431, proclamou o monofisismo herético. A Igreja procurou então, expressara a natureza humana de Cristo não só em fórmulas dogmáticas, mas também através da iconografia, que se torna um recurso não só artístico e catequético como também apologético contra os que negam a humanidade de Cristo. Todos os fatos e personagens da vida de Cristo tornam-se objetos de representação. Mosteiros e igrejas procuram cobrir-se de pinturas.

A crise iconoclasta não é exatamente contra a pintura de imagens, mas contra a sua veneração. A pergunta que se faz é: Pode-se ou não venerar a Sagrada Face de Cristo, da Virgem, dos apóstolos, mártires e santos? A proibição da adoração de imagens é clara no Antigo Testamento. Como conciliar a proibição bíblica com uma prática já secular? São João Damasceno, na primeira metade do século VIII elabora a tese de conciliação: não se trata de “adorar” uma imagem, mas de venerar o mistério nela expresso. As diversas manifestações da vida/mistério de Cristo se tornam objeto de veneração, pois cada uma delas é expressão de sua única Divindade. Não só a Sagrada Face de Cristo, mas cada aspecto de sua vida, bem como de sua santa Mãe e dos apóstolos, são extensão de um único e grande Mistério, o Mistério da Encarnação. O fundamento bíblico e dogmático, que permite ultrapassar a proibição vetero-testamentária da confecção de imagens se baseia no fato central do Cristianismo: O Verbo se fez carne. Deus, o Mistério, passou a ter um rosto, uma história. Aqueles que tomaram e tomam parte neste Mistério também tornaram-se dignos de ser representados e venerados. A visão da imagem estimula e facilita a oração, ensina S. João Damasceno e isso não pode ser menosprezado.

Outra questão se coloca: as representações sacras não podiam ser imitações exatas das pessoas ou das cenas evangélicas. Um excesso de realismo na representação em vez de facilitar a compreensão do mistério e a oração poderia, ao contrário, levar a distração ou mesmo a um “culto” da imagem. Não se tratava de uma Mímesis, de uma imitação, mas de uma idealização do representado que levasse a quem o contempla, em vez de se fixar na imagem, se abrir ao mistério, em si mesmo infinito e, portanto, irrepresentável. O ícone se torna uma “porta de entrada” para a contemplação do mistério infinito, que por ter se tornado humano permitiu ser representado. Daí todo o desenvolvimento de cada detalhe da iconografia, que de forma simbólica, longe de um realismo pictórico, é a expressão ideal de conteúdos de fé e de culto. Seja na oração particular ou na Sagrada Liturgia, o conjunto (palavras, gestos, sons, cantos, aromas, objetos e, é claro, imagens) se tornam uma introdução e permanência diante do Mistério Revelado, do Mistério que tem um rosto.

Nesse sentido é que podemos dizer que a iconografia foi e é expressão e extensão da compreensão do mistério da Encarnação, ou seja, da própria essência do Cristianismo. Um Cristianismo sem rostos, sem história seria a negação de si mesmo. A redução do Cristianismo a um conjunto de ideias ou dogmas ou regras morais sem o Rosto, sem os rostos dos que lhe deram origem e lhe dão continuidade será sempre a pior de todas as heresias, porque o Cristianismo é esta interação entre o humano e o divino, entre o carnal e o espiritual, entre o tempo e a eternidade.

A iconografia foi a primeira e grande valorização do humano ao nível da arte no Cristianismo. Se o Cristianismo é a afirmação do humano como lugar da manifestação do Mistério, a iconografia foi a manifestação sensível dessa verdade de fé. Muito mais do que expressão estética, artística, decorativa, ela se tornou experiência de fé, para quem o compõe e para quem o contempla.

Tão intensa foi a experiência e a manifestação da fé na iconografia que somente no século XIII – XIV, no Ocidente, temos uma nova e grandiosa expressão da relação entre o humano e o divino. Estamos no apogeu da Idade Média e do Humanismo Cristão. O novo ambiente social e cultural, as novas expressões da fé trazidas pelas ordens mendicantes, de modo especial os franciscanos e dominicanos, são o meio onde esta arte florescerá. A Escolástica afirmará: “Nada entra no intelecto se primeiro não passar pelos sentidos”. A arte desse período é a tradução deste axioma. Se a iconografia foi expressão do “idealismo cristão”, a pintura dos séculos citados, principalmente Giotto e Fra Angelico será a expressão do “realismo cristão”. Também não se trata de um realismo que procura “reproduzir” a realidade, mas de fazer participar quem contempla da cena no evento retratado. Tudo está centrado nos rostos, nas expressões humanas. Os rostos são os mesmos das pessoas que contemplam, bem como as emoções, os gestos, as cenas. É a grande interação que se cria o Mistério e o tempo presente, as dores e alegrias do dia a dia, das pessoas comuns, das cenas e ocupações comuns, com aquilo que lhes dá um sentido e uma esperança, pois o Mistério se manifestou para estes que vieram séculos depois.

A promessa do Cristianismo que o Mistério Eterno continua a manifestar-se no tempo, na história, na vida concreta dos homens e mulheres de todos os tempos, como se manifestou na vida dos pescadores da Galiléia. O Verbo se fez carne e continua a estender sua carnalidade no meio de nós e enquanto perdurar a espera por sua volta existirão expressões de arte retratando esta experiência. “Eis que Eu estarei convosco até o fim dos tempos”, afirmara Cristo. Todas as manifestações da Pessoa e da Presença de Cristo na história tenderão a expressar-se em imagens, pois estas comunicam, como diz S. João na sua epístola, “aquilo que nossos olhos viram, que nossas mãos tocaram” do Mistério Eterno.

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